quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Guerra santa no centro do mundo

CLÓVIS ROSSI

Decapitação de jornalista traz o Estado Islâmico e seu fanatismo para o foco do Ocidente. Tarde demais?

Até muito recentemente, a guerra que o EI (Estado Islâmico) levava avante no Iraque e na Síria era a verdadeira guerra no fim do mundo, título de um livro de Mário Vargas Llosa sobre a guerra de Canudos no Brasil. No fim do mundo porque o Ocidente não prestava lá muita atenção a ela.
Constata a revista alemã Der Spiegel: "Foi só a ameaça de genocídio [sobre os yazidis] que levou a comunidade global a agir. Países ao redor do mundo rapidamente se uniram na batalha contra o EI, de longe a tropa jihadista mais brutal, mais bem sucedida e mais sinistra do mundo".
Agora, a decapitação do jornalista norte-americano James Foley traz a guerra para o centro do mundo. Tarde demais, acha Charles Lister (Brookings Institution), que pesquisa intensivamente a milícia radical: "Infelizmente, permitiu-se que o EI crescesse e se desenvolvesse a tal ponto que qualquer estratégia para realmente contê-lo levará anos e consumirá significativos recursos", disse à Spiegel.
De fato, o EI é hoje por hoje um exército (com de 6.000 a 8.000 integrantes na Síria e mais de 15 mil no Iraque), mas é também um Estado. Relata a revista alemã:
"O EI até oferece benefícios da seguridade social aos residentes das áreas que controla --exatamente como um país de verdade, diz Lister, da Brookings. Em qualquer região que conquiste, continua a pagar os trabalhadores locais".
Dinheiro não está sendo um problema para os fanáticos: quando conquistaram a cidade de Mossul, ficaram com US$ 500 milhões dos cofres locais, para não mencionar o fato de que cobram impostos e vendem petróleo e gás das áreas que controlam. Esse comportamento tecnocrático choca frontalmente com a fonte ideológica do EI. A milícia bebe nos dogmas de pregadores islâmicos radicais tão antigos como, por exemplo, o xeque Taqi ibn Taymiyya (1263-1328).
O jornalista iraquiano Shukur Khilkhal explica que Taymiyya exige que os muçulmanos promovam a guerra santa (jihad) contra os infiéis (e todos os Estados do mundo são considerados infiéis), os apóstatas e até contra os muçulmanos hesitantes.
É por isso que o EI declarou o califado (governo segundo as regras islâmicas) nas áreas que ocupa na Síria e no Iraque. Seria, pois, o único Estado não infiel no planeta.
Um Estado tão primitivo que, além das conhecidas regras de apedrejamento de acusadas de adultério ou o corte das mãos de ladrões, inclui proibir sorvetes ou a venda de pepinos nos mercados para não despertar pensamentos impuros.
Enfim, como disse nesta quarta-feira (20) o presidente Barack Obama, "um grupo como o EI não tem lugar no século 21".
O problema é que seus adeptos moveram-se do fim do mundo para, por exemplo, a Oxford Street de Londres, a mais movimentada rua de comércio do mundo, na qual distribuem panfletos convidando os transeuntes a se unir ao califado. Calcula-se que entre 2.000 e 3.000 jovens europeus já aceitaram o convite.
Tudo somado, vê-se que bombardear montanhas do Iraque não será suficiente para vencer a guerra. Folha, 21.08.2014.
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terça-feira, 15 de julho de 2014

Bahrein: Disputa pelo poder reacende sectarismo

POR DAVID D. KIRKPATRICK

RIFFA, Bahrein - Barricadas de concreto bloqueiam os acessos rodoviários a este próspero enclave sunita, onde soldados em veículos blindados montam guarda nas mansões da família governante e da elite empresarial.
Mais além do enclave, há aldeias pobres de xiitas, os quais perfazem 70% da população de mais de 650 mil do Bahrein. É nessas aldeias que a polícia constantemente entra em conflito com jovens.
Essas batalhas expressam hostilidades sectárias quase tão antigas quanto o islã. Ao mesmo tempo, elas também evidenciam uma nova disputa pelo poder que assola toda a região em consequência da invasão americana no Iraque e das revoltas da Primavera Árabe.
O Bahrein foi o primeiro lugar onde as reivindicações por cidadania igualitária e governança democrática da Primavera Árabe degeneraram em uma rixa sectária, que a princípio parecia uma anomalia. Mas a experiência do país agora parece ter sido um prenúncio do que viria a ser o ressurgimento de rivalidades centenárias entre muçulmanos sunitas e xiitas em grande parte da região. A situação ameaça diluir as fronteiras de Estados como Síria e Iraque, desestabiliza o Bahrein e o Líbano e acelera uma disputa regional por poder e influência entre o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita.
Estudiosos e ativistas dizem que a atual onda de violência sectária no Oriente Médio não é apenas a eclosão de rivalidades religiosas outrora reprimidas pelos autocratas seculares no comando da região. Na opinião deles, os ressentimentos religiosos estão sendo explorados em uma luta muito terrena por poder. "Há forças que insuflam a tensão a fim de obter uma fatia maior do bolo", disse Maytham al-Salman, xeque xiita que foi torturado pela polícia bareinita em 2011 devido a seu apoio à revolta.
A Praça da Pérola, onde manifestantes se instalaram durante uma semana há três anos, tornou-se um acampamento militar permanente e teve a estátua homônima demolida, em uma recordação sombria do dia de março de 2011 em que veículos e tropas das monarquias sunitas vizinhas vieram da Arábia Saudita para esmagar o movimento pró-democracia, predominantemente xiita.
No entanto, após ser despertada, a fúria sectária pode ser imprevisível e difícil de controlar.
Desde os primeiros levantes da Primavera Árabe na Síria, por exemplo, o governo do ditador Bashar al-Assad e de seus apoiadores iranianos tentaram retratar o movimento como uma tentativa de tomar o poder por certos extremistas sunitas, a fim de insuflar cristãos e outras minorias religiosas contra ele. A Arábia Saudita e outros Estados do golfo Pérsico dominados por sunitas patrocinaram transmissões via satélite inflamando o ressentimento do Irã xiita e dos alauitas, ramo xiita ao qual pertencem os Assad. Árabes sunitas em monarquias do Golfo enviaram ajuda aos rebeldes sunitas que se tornavam cada vez mais violentos.
Agora, a revolta síria concretizou alguns dos piores temores sectários -e ameaça não só a segurança de Assad, como também a do Irã e da Arábia Saudita. Os jihadistas sunitas mais radicais, que formam o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), tomaram uma ampla faixa dos territórios iraquiano e sírio e se gabam de ter executado centenas de xiitas. Sua fúria os levou às portas do governo iraquiano em Bagdá, aliado dos iranianos, e da monarquia saudita, que há muito temia esses extremistas como uma ameaça a seu próprio poder interno.
Na região, porém, o ressurgimento de hostilidades sectárias entre sunitas e xiitas segue um padrão: o enfraquecimento de velhos Estados leva os cidadãos ansiosos a assumir o sectarismo, ao passo que os governantes inseguros se cercam de pessoas leais de seus clãs e denominações religiosas, sistematicamente alienando outros, muitas vezes seguindo linhas sectárias. Segundo analistas, no caso de aliados dos americanos como Bahrein e Iraque, os EUA e outras potências ocidentais fizeram vista grossa aos excessos e ao sectarismo dos governantes que apoiavam.
Os dois pesos-pesados geopolíticos da região, a teocracia xiita no Irã e a monarquia sunita na Arábia Saudita, têm buscado proteger seus interesses dando apoio a clérigos, redes de satélite, facções políticas e grupos armados seguindo linhas sectárias.
Vali Nasr, da Universidade Johns Hopkins em Maryland, disse que a Arábia Saudita e o Irã fazem uso de uma política externa sectária para atingir objetivos tipicamente seculares. "Eles fazem o jogo da política do grande poder, e as peças de xadrez que escolhem inflamam o sectarismo", afirmou.
O racha entre sunitas e xiitas começou no século 7°, após a morte do profeta Maomé. A facção dominante, que deu origem aos sunitas, queria que a liderança fosse passada a Abu Baker, sogro de Maomé. A facção que originou os xiitas era a favor de Ali, primo e genro de Maomé. Atualmente, os xiitas compõem cerca de 15% do 1,6 bilhão de muçulmanos no mundo, embora formem as maiorias no Irã, no Iraque, no Bahrein e no Azerbaijão e sejam numerosos no Líbano.
Sunitas e xiitas conviveram bem, casando-se entre si e fazendo alianças políticas, em várias épocas. Muitos sunitas, porém, ainda acham que os xiitas não são verdadeiros muçulmanos, ao passo que xiitas se queixam de séculos de perseguição.
No Iraque, que está de volta às manchetes, muitas pesquisas mostraram consistentemente que a maioria dos sunitas e dos xiitas era a favor da coexistência, descrevendo seu país como "na maior parte, unificado". Porém, com o monopólio do poder pelo primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki e o aumento dos abusos aos direitos humanos nos últimos anos, a unidade nacional enfraqueceu.
No Bahrein, há sinais de violência crescente e de envolvimento iraniano. Muitos integrantes dos partidos de oposição bareinitas dizem que sua única esperança é uma paz regional que inclua a Arábia Saudita e o Irã.
Certos líderes da oposição argumentam que, embora o Bahrein possa se tornar o próximo barril de pólvora a explodir, o emirado ainda tem chance de vir a ser um modelo de poder compartilhado.
Khalil al-Marzooq, do principal partido xiita, indaga: "Por que esperar até que haja um verdadeiro desastre?". NYT, 15.07.2014

    quinta-feira, 3 de julho de 2014

    KENNETH MAXWELL - Tumulto no Oriente Médio


    Às vésperas do Ramadã, o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL), um grupo jihadista extremista, capturou territórios no Iraque e na Síria, decretou a eliminação das fronteiras entre eles e estabeleceu um califado visto por muitos muçulmanos como herdeiro do poder exercido por Maomé. O primeiro califado foi criado no século 7º. O último califado otomano foi abolido em 1924. O líder do EIIL assumiu o nome de Abu Bakr al Baghdadi e se faz chamar de califa Ibrahim.
    O EIIL está ativo na Síria e no Iraque desde 2004, mas o surpreendente sucesso que o movimento teve nos campos de batalha nos últimos 30 dias, com a desintegração do Exército iraquiano nas regiões sunitas do norte e oeste do país, deixando para trás todo o equipamento fornecido pelos Estados Unidos, causou choque no Oriente Médio e no mundo todo. O EIIL já contava com boas verbas e controlava campos de petróleo capturados no leste da Síria. Agora tem dinheiro saqueado de bancos iraquianos. O movimento capturou Mosul, importante cidade do Iraque, e a refinaria de petróleo de Baiji. Em seguida, tomou Tikrit, cidade onde Saddam Hussein nasceu.
    Combatentes curdos se deslocaram para as fronteiras da região curda e assumiram o controle da província de Kirkuk. O Curdistão está isolado de Bagdá pelos insurgentes sunitas. Os curdos objetam há muito à política sectária e à falta de recursos do governo xiita de Bagdá, comandado pelo premiê Nouri al-Maliki.
    As vitórias do EIIL criaram estranhas parcerias. O Irã apoia os xiitas em Bagdá e o mesmo vale para o sitiado regime alauita de Assad na Síria. Os EUA realizam voos com drones (aviões não tripulados) no Iraque e enviaram 300 homens das forças especiais para avaliar as condições e as necessidades das Forças Armadas do país. O Irã também enviou drones e assessores.
    Mas a Rússia entregou cinco caças Su-30K e enviou especialistas a Bagdá. Os EUA ainda não forneceram os caças F-16 prometidos, cuja entrega foi postergada para setembro ou outubro pelo Congresso, tampouco os helicópteros de ataque Apache prometidos, cujos pilotos requererão meses de treinamento.
    Obama quer um governo de unidade com todas as facções em Bagdá. Mas Maliki não está inclinado a renunciar, e curdos e sunitas não estão dispostos a aceitá-lo. Enquanto Obama pondera, o Iraque queima. E queima por conta dos erros políticos e dos erros das ações americanas do passado. Queima também pela ausência atual de uma resposta efetiva por parte de um governo aprisionado em impasses políticos e preocupado com questões internas em Washington.
    Desta vez, o tempo, a estratégia e a história não estão do lado dos EUA. Folha, 03.07.2014.
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    terça-feira, 17 de junho de 2014

    INTELIGÊNCIA - ROYA HAKAKIAN: Revolução inacabada

    Nas últimas semanas, enquanto líderes dos Estados Unidos e da União Europeia participavam de negociações nucleares com o Irã, outra discussão era travada no ciberespaço entre mulheres iranianas e cidadãos do mundo.
    Iranianas corajosas tiraram seus véus e posaram para as câmeras, numa campanha intitulada Minha Liberdade Furtiva. Enquanto autoridades ocidentais se esforçavam para impedir Teerã de conseguir "a bomba", a campanha das mulheres desencadeava uma explosão própria e provocava uma resposta agressiva do governo.
    O regime que queimou efígies de Tio Sam e vendou reféns, como se recordam pessoas que assistiram à Revolução Islâmica de 1979 acontecendo na televisão, hoje é ofuscado por suas cidadãs mulheres. A campanha das mulheres mostrou que, embora a República Islâmica possa estar oficialmente no comando, seu esforço de 35 anos para impor sua ideologia sobre metade da nação fracassou, na maior parte.
    Para retaliar as imagens de centenas de mulheres sem véu postadas no Facebook, Teerã prendeu jovens que postaram no YouTube um vídeo em que dançavam ao som de "Happy", de Pharrell Williams. A dança aconteceu sobre um dos telhados em que foi encenado o espetáculo histórico do aiatolá Ruhollah Khomeini entoando "Allah-akbar" em 1978, nos dias que antecederam a queda do xá.
    Assim como o movimento dos direitos civis é importante para o entendimento da outra parte dos EUA, a história da luta de quase cem anos em torno do "hijab" é importante para a compreensão do Irã oculto. Quando o país foi modernizado, na primeira parte do século passado, o xá Reza Pahlavi, em 1936, instruiu seus gendarmes a arrancar os véus das cabeças de mulheres em público.
    A abolição do véu e a dessegregação por gêneros definiu o governo de Pahlavi e se tornou o éthos do Irã moderno. Nos dias emocionantes de 1978, quando o zelo revolucionário dominou a nação, a maioria das vozes seculares abraçou o hijab como símbolo da rejeição da monarquia e seus valores.
    Se acompanhamos a história do véu no Irã, podemos acompanhar o fracasso do movimento democrático no país. A liderança secular posicionou-se contra o clero na maioria das questões, incluindo a liberdade da imprensa e de expressão. Mas, quando se tratou da liberdade de vestimenta das mulheres ou da proteção dos direitos das mulheres, ela a considerou menos urgente que questões como um potencial golpe apoiado pelos EUA contra o regime ainda nascente. Na formação de uma coalizão com o clero contra o xá, o hijab foi uma concessão fácil para a oposição secular, dominada por homens, fazer a Khomeini.
    Dias após a revolução de 1979, Khomeini deu a ordem de reinstauração do véu compulsório. Um grupo pequeno mas eficaz de mulheres, acompanhado por algumas ativistas francesas e pela feminista americana Kate Millett, promoveu uma manifestação contra o decreto, em 8 de março de 1979, e obrigou Khomeini a recuar.
    O véu só foi instaurado como lei em 1983. Naquela manifestação histórica, um repórter perguntou a Millett o que achava da posição do aiatolá em relação ao código de vestimenta islâmico. Millett, que posteriormente foi detida e expulsa do país, lançou um olhar indignado para a câmera e tachou o homem mais venerado do Irã de "machista".
    Feita na esteira de uma revolução que seus famosos colegas intelectuais de esquerda tinham saudado como anti-imperialista, sua declaração foi presciente. Enquanto as escolas, os ônibus e os teatros do Irã foram segregados e as mulheres foram proibidas de atuar na maioria das carreiras de direito, medicina e engenharia, a misoginia era minimizada, tachada de nada mais que a petulância feminista de praxe. As mulheres perderam o direito de viajar e se divorciar. Nos tribunais, o valor do testemunho de uma mulher em um julgamento criminal caiu para metade do de um homem. Milhões de mulheres foram relegadas à cidadania de segunda classe, mas a intenção nociva de Khomeini ainda era medida pelo medo que ele suscitava no Ocidente, não pelo mal que causava às mulheres em seu país. Ele foi descrito como terrorista, fundamentalista e megalomaníaco religioso, mas raramente como misógino.
    Hoje, a campanha Minha Liberdade Furtiva revela que a declaração acalorada de Millett anunciou a verdadeira ordem que se esconderia sob o véu do nome de República Islâmica: o apartheid de gênero. Disfarçado sob o manto do islã, o tipo de misoginia de Khomeini inspirou intenção nociva em outros da região, convertendo-se em um monstro onipresente e de muitas cabeças: na praça Tahrir, ele estuprou mulheres manifestantes; no Paquistão, disparou contra Malala; na Nigéria, roubou quase 300 meninas de uma escola.
    Passadas décadas do governo do xá, as mulheres iranianas estão retomando furtivamente a liberdade que a monarquia certa vez lhes outorgou à força. Para esta geração, a meta não é abolir o véu, já que muitas iranianas ainda o abraçam, mas proteger legalmente a opção de usá-lo ou não. Até agora, seu espetáculo virtual bem-sucedido -com centenas de milhares de "curtir" no Facebook- e a cobertura da mídia não constituem uma vitória, pois uma vitória no ciberespaço é etérea.
    Uma vitória real tem suas raízes numa campanha dotada de visão, valores, estratégia e uma identidade forte. Aquelas que combatem precisam ligar os pontinhos da irmandade feminina global, de modo a transcender o mero espetáculo e iniciar um movimento real. Os cidadãos do mundo real não podem limitar seu apoio a um simples sinal de positivo na mídia social. Uma nova geração de Kate Milletts precisa enxergar mais além da cortina de fumaça religiosa instalada pelos misóginos para mantê-la à distância. O pessoal ainda é político, sem dúvida. Mas agora também é global. NYT, 17.06.2014

    quinta-feira, 29 de maio de 2014

    Copa do Alcorão: No Irã, representantes de 70 países disputam quem melhor recita o livro sagrado do islã; país usa a competição para se promover

    SAMY ADGHIRNI - DE TEERÃ
    Jorge Ezequiel Diaz, 26, viajou de Buenos Aires até Teerã para participar da Competição Internacional do Alcorão, que reúne a cada ano na capital do Irã os maiores mestres na arte de recitar e decorar o livro sagrado do islã.
    Mas o argentino, inscrito na categoria leitura, não foi páreo diante de concorrentes mais preparados. "O nível é alto demais", suspirou, após declamar um trecho definido por sorteio.
    Jorge foi eliminado porque o júri questionou seu sotaque em árabe, língua original do Alcorão, que ele não fala. Os árbitros também acharam que ele errou na ênfase ao pronunciar a palavra Alá.
    O argentino foi um dos 106 inscritos na 31ª edição da competição, que se encerra na próxima segunda, após uma semana de disputa num centro de convenções. Mulheres não participam.
    Neste ano, o concurso tem representantes de 70 países, incluindo Reino Unido e Canadá. Não há brasileiros.
    A disputa é promovida pela Organização para Doações e Caridade, controlada pelo líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.
    Todas as despesas dos participantes, de traslado aéreo a alimentação, são bancadas pela organização como parte da estratégia iraniana de estender seu "soft power", o poder geopolítico pela persuasão e pela empatia.
    O Irã convidou até um participante da Colômbia, país sem embaixada em Teerã.
    "Estou aqui para aprender. Quero dedicar minha vida ao islã", diz o colombiano Hernando Diaz, 27.
    Apesar de o Irã ser o maior propagador do xiismo, ramo minoritário no islã, candidatos sunitas se dizem bem recebidos. "Iranianos têm sido muito gentis. Até o hotel é bom", afirma o sunita Hamid Ahmed, 37, do Níger.
    A maior parte dos candidatos são craques do tajwid --a ciência da recitação do Alcorão-- em seus respectivos países. Outros são detectados por "olheiros" mundo afora e incentivados a mandar uma gravação de voz como teste.
    O prêmio final equivale a US$ 13 mil (R$ 28 mil) para o vencedor de cada categoria.
    Na prova de recitação, o júri avalia dicção, emoção e controle de respiração em versículos que podem se estender por meio minuto. A leitura se assemelha a um canto pausado e melancólico.
    Na categoria memorização, o candidato tem um dia para decorar um trecho, também definido em sorteio.
    "O nível dos participantes ocidentais aumentou muito nos últimos anos", diz o clérigo Seyed Masoud Mirian, chefe do comitê de seleção.
    Os favoritos são participantes dos países de maioria muçulmana, principalmente aqueles que falam árabe.
    ABISMO
    Não é preciso ser perito, por exemplo, para notar o abismo entre o candidato egípcio, clérigo profissional de canto envolvente e cristalino, e o chinês, cuja voz parecia oscilar a cada frase.
    Concorrentes se revezam num palco diante de um plenário cujas mesas são enfeitadas com bandeiras dos países participantes.
    A performance ocorre sob olhar grave de dois enormes retratos dos líderes supremos do passado e do presente, Khomeini e Ali Khamenei.
    O texto declamado aparece num telão eletrônico em árabe, farsi e inglês. Não há aplausos.
    O júri, composto por 15 membros, acompanha numa sala separada, olho grudado na transmissão ao vivo da TV estatal.
    As provas são abertas ao público, que circula livremente pelo local e pode falar com os participantes. O plenário tem área reservada às mulheres, quase todas cobertas com o véu preto integral que identifica origem social conservadora.
    "Gosto muito da atmosfera espiritual deste evento", diz a dona de casa Leila, 30.
    Alguns competidores, porém, não escondiam a decepção pelo fato de o presidente Hasan Rowhani, um clérigo, não ter aparecido na cerimônia de abertura.
    "Estávamos todos na expectativa de vê-lo", lamentou o argentino.
    A ausência alimenta especulações de disputas internas entre Rowhani, favorável à relativa liberalização, e seus adversários ultraconservadores, alguns dos quais são associados ao líder supremo. "O presidente não aceitou nosso convite", diz Bagheri Karim, do comitê organizador. Folha, 29.05.2014.

    terça-feira, 20 de maio de 2014

    Manifestantes em Teerã protestam contra "véus errados"

    Por THOMAS ERDBRINK
    TEERÃ - Motoristas buzinavam freneticamente em seus carros, enquanto homens e mulheres vestidas com o chador preto brandiam os punhos ao abrir caminho pelo intenso tráfego matutino, esbravejando para que o governo prenda mulheres que não estejam devidamente cobertas.
    "A corrupção e a imoralidade engoliram a nação", disse uma mulher, Shala Mousavi, a um repórter da rede de TV estatal iraniana. "Somos forçados a agir".
    Os manifestantes tomaram a praça Fatemi, no centro da cidade, desafiando a proibição governamental a protestos não autorizados previamente.
    Agentes da polícia ficaram de prontidão em meio aos manifestantes que bloquearam o trânsito para exigir medidas mais duras contra mulheres que desrespeitem o código de vestimenta islâmico do Irã, principalmente agora que o verão está chegando no país. Em termos numéricos, o protesto sobre o código de vestimenta, organizado por um seminário xiita em Qom, foi insignificante.
    Mas o fato de a manifestação ter sido permitida levou muitos a concluírem que forças poderosas estão conspirando para minar as frequentes promessas do presidente Hasan Rowhani de conceder mais liberdades individuais.
    Essa frente na longa guerra cultural entre os radicais e os reformistas do Irã se concentrou em um dos pilares da Revolução Islâmica: o véu para as mulheres.
    No país, todas elas são obrigadas a cobrir a cabeça e usar um casaco, de preferência até um pouco acima do joelho, em público, incluindo dignatárias e turistas estrangeiras.
    O Estado não determina formas exatas, cores ou tamanhos para os véus e casacos, por isso muitas iranianas criaram conjuntos combinando casacos apertados e echarpes fluorescentes do tamanho de um lenço, de onde mechas de cabelo caem em cascata.
    Os radicais frequentemente acusam algumas mulheres de "perambular pelas ruas praticamente nuas". As roupas ocidentais também são desconfortáveis, disse um importante aiatolá.
    "Vestindo roupas apertadas, algumas não podem sentar ou ficar em pé facilmente. Tais vestidos são prisões, e não roupas", disse Naser Marakem Shirazi em um comunicado. "Nossa cultura de vestimenta precisa ser mudada."
    O Estado promoveu debates com clérigos na televisão para tentar convencer as mulheres a se cobrirem totalmente, destacando que a exposição de mechas pode levar a "depravações morais".
    Recentemente, apareceram em Teerã cartazes mostrando a iguaria nacional do país, o pistache, com um texto dizendo que tudo o que é bom vem embrulhado numa casca, assim como o véu, o "hijab".
    "Mas isso não está funcionando", disse uma mulher durante o protesto, fazendo referência à abordagem educacional em relação ao "hijab". "Todo verão, os 'hijabs errados' aparecem de novo. É simplesmente terrível."
    Masoumeh, como ela se identifica, e algumas amigas do seu bairro, Yaftabad, alugaram um ônibus para irem à manifestação "a fim de acabar com essa situação".
    Enquanto ela falava, um homem calvo, contrário ao protesto, aproximou-se e disse: "Deixem-nos em paz. Tenho vergonha de que você seja iraniana", e foi embora. "Que você fique careca para sempre", retrucou ela, fazendo suas amigas caírem na gargalhada.
    A solução, "infelizmente", segundo Masoumeh, é dar plenos poderes à polícia da moralidade.
    Diante de uma sociedade em transformação, onde mais pessoas estão focadas em direitos individuais do que em tradições, o Judiciário do Irã e a polícia criaram em 2005 a "Gashte Ershad", ou patrulha de orientação, para fazer valer o código de vestimenta. Há anos esses agentes abordam mulheres que não estariam devidamente trajadas. Seus pais, maridos e irmãos precisam ir à delegacia para liberá-las.
    Durante sua campanha, em junho, Rowhani prometeu retirar essas odiadas forças das ruas.
    Em visita a uma feira de livros, quando Rouhani disse que "pessoas cultas não precisam de orientação", Ismael Ahmadi Moghaddam, comandante da polícia, respondeu que "as pessoas incultas é que precisam de orientação".
    No dia seguinte, a polícia da moralidade apareceu. Há indícios, porém, de que os radicais podem ter um verão difícil pela frente. Uma nova página do Facebook traz fotos de iranianas sem seus lenços, em passeios turísticos.
    Mais de 135 mil pessoas curtiram a página "Liberdades Furtivas de Mulheres Iranianas" nos seus primeiros nove dias no ar.
    Os administradores da página são anônimos, e a foto da capa, no topo da página, diz "Somos apenas nós mesmas". NYT, 20.05.14

    Invocando deuses para o bem e o mal

    INTELIGÊNCIA/OKEY NDIBE
    O sequestro de estudantes nigerianas é o último drama desalentador que ocorreu no país mais populoso da África, cujo panorama promissor frequentemente é minado por desastres apresentados como atos divinos.
    A Nigéria está entre os países mais religiosos do mundo -e há poucos anos eram apontados como o povo mais feliz do globo.
    Um estrangeiro que venha aqui pode se espantar com a quantidade de igrejas e mesquitas.
    As conversas são repletas de referências a Deus. Pergunte a alguém, "Como vai?", e a resposta é: "Bem, graças a Deus".
    Perguntando se a pessoa já conseguiu um emprego, é provável ouvir: "Acredito que Deus me arranjará um emprego" ou "Deus está no comando".
    Em um país com tantas estradas esburacadas e tantos carros em mau estado, e onde é mais fácil comprar uma carteira de motorista do que fazer um exame de habilitação, poucos viajam sem fazer uma pausa para orar.
    Motoristas cristãos rezam para serem "cobertos pelo sangue de Jesus" e imploram para Deus "deter bruxas, feiticeiros e espíritos demoníacos" que supostamente se escondem nas estradas.
    Lamentavelmente, a manifestação obsessiva de religiosidade frequentemente é uma desculpa para fazer a coisa errada -ou não fazer nada. O fervor pode levar à fuga da responsabilidade. É como se alguns nigerianos tivessem inventado um "Deus" indulgente com quem fazem tratos.
    Clérigos mal-intencionados ganham fortunas afirmando que todos os problemas imagináveis -pobreza, desemprego, doenças e a incapacidade de atrair um cônjuge- têm uma causa satânica e precisam de antídoto divino.
    Em 2012, uma alta funcionária do governo da Nigéria disse a seus convidados sul-africanos que um espírito maligno estava por trás do fracasso de seu país em fornecer energia elétrica regularmente. E defendeu um exorcismo para sanar o problema.
    O grupo radical islâmico Boko Haram usou a religião para justificar os sequestros, alegando que educar meninas viola o Alcorão.
    O Boko Haram, que jurou erradicar a influência ocidental e impor a supremacia islâmica, incendiou escolas, matou centenas de estudantes em seus quartos e lançou bombas em lugares públicos, matando centenas de pessoas e mutilando muitas outras. Anteriormente neste mês, alguns de seus membros, armados com fuzis AK-47 e granadas lançadas por foguetes, foram a Gamboru Ngala, uma comunidade pastoral perto de Camarões, e mataram mais de 300 pessoas.
    A sede de sangue do Boko Haram e sua alegria perversa ao matar e mutilar em nome de Alá têm despertado um misto de horror e curiosidade no mundo.
    Acostumados com atrocidades cujos autores invocam divindades, os nigerianos veem a disseminação do terror sectário como uma fase mais sangrenta de uma calamidade incessante.
    Duas das principais religiões do mundo, o islamismo e o cristianismo, se debatem na Nigéria. Ambas tiveram períodos de coexistência pacífica, mas também registram uma longa história de relações tumultuadas.
    Muitas vezes as tensões degeneraram em violência devido a membros ultrazelosos de correntes extremistas do islã, dispostos a converter "infiéis" à força.
    A Nigéria tem muitos cristãos, muçulmanos e animistas que levam uma vida honesta, digna e moldada pelos preceitos de sua fé.
    Mas é também um país no qual escroques e charlatães, incluindo políticos e os chamados "homens poderosos de Deus", usam o nome de Deus como marketing ou para encobrir suas falcatruas.
    Em 2009, dois executivos de um banco nigeriano acusados de fraudar clientes que haviam depositado centenas de milhões de dólares eram não só membros proeminentes de uma igreja, como pastores ordenados.
    Nunca vi qualquer político nigeriano nos últimos 25 anos que não tenha dito ser um muçulmano ou cristão devotado. Mesmo assim, a maioria enriqueceu obscena e inexplicavelmente.
    É fascinante observar como a linguagem do poder público na Nigéria muda o tempo todo, amoldando-se a novos valores morais. Há várias décadas, um funcionário público que acumulasse riqueza ilicitamente seria chamado de ladrão ou peculatário, mesmo que não fosse punido pela lei.
    Hoje em dia, um funcionário como esse diria: "Fui abençoado pelo meu Deus". Um ditado diz que tudo o que um ladrão precisa para santificar seu roubo é oferecer o dízimo estipulado em 10%.
    E o que dizer de um candidato político que trapaceia para ganhar uma eleição? Como conferencista da Fulbright na Universidade de Lagos em 2002, usei uma discussão de "A Man of the People" [Um Homem do Povo], de Chinua Achebe, para falar sobre fraude eleitoral.
    Um aluno ergueu a mão, ansioso para dar sua opinião. "Todo poder emana de Deus. Portanto, não se pode condenar um candidato, mesmo que ele trapaceie."
    Outro estudante me explicou o seguinte: "Se não quisesse que o trapaceiro ganhasse, Deus poderia decretar sua morte".
    Esse argumento bizarro explica por que, apesar dos templos onipresentes, a Nigéria parece ser tão obsediada eticamente. NYT, 20.05.14
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    terça-feira, 15 de abril de 2014

    Guerra contra Síria é dos EUA e de forças não democráticas: Vice-chanceler de Assad diz que ocidente tem de confiar no regime, e não em terroristas

    DIOGO BERCITO - ENVIADO ESPECIAL A DAMASCO
    Faisal al-Maqdad diz que foi surpreendido, em março de 2011, pelas vozes que tomaram as ruas em Deraa, sul da Síria, pedindo liberdade.
    Em parte, afirma, porque acreditava que a Síria -governada há décadas pelo mesmo partido e pela mesma família- já fosse, afinal, livre. E porque ainda não entendia a "conspiração" armada para derrubar o país, antigo desafeto dos governos dos EUA e de Israel. "É uma guerra contra a Síria", afirma Maqdad à Folha, em seu escritório na capital, Damasco. Ele é vice-chanceler sírio e representante permanente do país na ONU.

    Diante da saúde frágil do chanceler sírio, Walid al-Mualim, recentemente submetido a uma cirurgia cardíaca, Maqdad tem sido um dos principais rostos do regime de Bashar al-Assad. Ele diz ter certeza de que Assad vai vencer a guerra -só "depende da quantidade de dinheiro e de armas enviados pelas forças externas [para os rebeldes]".


    Folha - Como o sr. descreveria a situação atual na Síria?
    Faisal al-Maqdad - É uma guerra dos EUA e das forças não democráticas da região contra a Síria, incluindo Arábia Saudita, Turquia e Israel. Armas são entregues a grupos terroristas, como Al Qaeda e Jabhat al-Nusra.


    Qual o interesse externo?
    Os EUA querem que o último país no Oriente Médio a exigir uma solução justa ao conflito árabe-israelense desista. Querem mudar a natureza das alianças na região.


    Para Israel, talvez fosse vantajoso que Assad ficasse no poder, por ser a opção estável.
    É absolutamente o oposto. Israel tem recebido muitos dos feridos da Al Qaeda e de outros grupos terroristas [tratados em hospitais israelenses]. Essas gangues atacaram os palestinos na Síria, que são a esperança de um Estado palestino independente.


    Quem é a oposição armada?
    Conheço alguns deles pessoalmente. São criminosos e contrabandistas. São o tipo de pessoa que pode ser comprada pelos milhões de dólares enviados pela Arábia Saudita e pelos governos ocidentais. São terroristas armados que querem estabelecer um califado islâmico e restaurar o passado, em detrimento do governo secular sírio, que estabilizou a região por eras.


    Qual foi o ponto de inflexão, após parecer que os rebeldes estavam perto de vencer?
    No começo, não sabíamos o que estava acontecendo. O governo não esperava a quantidade enorme de armas e de dinheiro que entrou na Síria. O Exército não estava preparado para essas batalhas. Em um estágio seguinte, quando treinamos nosso Exército e mobilizamos o povo em forças de defesa, fomos capazes de rebater o ataque. Hoje, não há um só lugar na Síria em que o regime não possa entrar, caso o queira.


    Não houve excesso do uso da força pelo governo?
    Não. Todos os crimes foram cometidos por grupos armados. É hora de a comunidade internacional entender que precisa confiar no governo, e não nos grupos terroristas.


    O sr. tem certeza de que vai vencer a guerra?
    Absolutamente.


    Em quanto tempo?
    Depende da quantidade de dinheiro e de armas enviados pelas forças externas. Queremos, desde o início, resolver essa questão de maneira política. Mas aqueles que querem controlar a Síria não dão uma chance à solução política. Acreditamos que, no fim do processo político, deva haver uma urna para decidir quem vai liderar a Síria.


    Essa já seria uma concessão do governo?
    A democracia não é uma concessão. Democracia é um processo. O presidente Assad falou sobre esse processo por um longo tempo. Mas os opositores sabem que, democraticamente falando, não vão vencer. Como podemos discutir democracia com grupos terroristas, como Al Qaeda e Jabhat al Nusra? É difícil.


    Haverá uma terceira negociação em Genebra?
    A negociação política é a única solução. Mas não podemos desistir de nosso esforço contra o terrorismo. Acho que essa não é só nossa responsabilidade, mas também a da comunidade internacional. Líderes que querem justificar seu apoio a grupos como a Al Qaeda afirmam que a Síria tornou-se um ímã para organizações terroristas. Sim, mas eles são justamente os responsáveis por criar a atmosfera que as atraiu.


    Em um governo de transição, Assad seria o presidente? Isso é negociável?
    É absolutamente inegociável. Assad é a garantia para a unidade do povo sírio. Ele tem um grande apoio. Se há dúvidas, vamos às eleições.


    As manifestações pediam mais liberdade. Há liberdade na Síria? É um erro dizer que Assad é um ditador?
    Eles estão errados. Há problemas aqui e ali. Não posso dizer que a Síria seja um paraíso. O Brasil também não é. Vocês tiveram diversas manifestações contra a Copa, contra o transporte público, e não posso dizer que não há democracia no Brasil. Somos países em desenvolvimento.


    Como avalia a atitude brasileira em relação à Síria?
    Estive no Brasil no início da insurgência, para me reunir com membros do governo. É claro que há pressão no Brasil por países ocidentais, como os EUA. Mas o Brasil precisa entender melhor o desenvolvimento dos eventos na Síria, em especial aqueles relacionados aos direitos humanos. Os direitos humanos estão sendo violados por terroristas, não pelo governo.

    Folha, 15.04.2014

    Problemas colocam 'modelo turco' na berlinda:

    ELENA LAZAROU -  ESPECIAL PARA A FOLHA
    Em mais um episódio da saga política que trouxe a Turquia para as primeiras páginas da mídia internacional, a Corte Constitucional do país declarou na sexta-feira parte da reforma judiciária do primeiro-ministro Recep Erdogan inconstitucional.
    A reforma teria dado ao governo maior controle sobre a nomeação de promotores e juízes. Isto ocorre apenas alguns meses após a explosão de escândalos de corrupção envolvendo alguns dos principais aliados de Erdogan.
    Este é apenas o último de uma série de eventos que desafiaram o premiê turco desde junho passado, quando amplos protestos populares contra a natureza autoritária do governo estouraram.
    A estes seguiram-se numerosas acusações de corrupção e a ruptura entre o primeiro-ministro e o influente pregador islâmico Fettullah Gülen e sua rede --que já foram influentes aliados de Erdogan.
    Como reação, o premiê baniu o uso do Twitter e do Facebook no país.
    Dentro da Turquia e ao redor do mundo, esses eventos levaram a profundas reavaliações do "modelo turco", que havia sido visto como um possível exemplo nos momentos que se seguiram à Primavera Árabe.
    Também abriram uma série de questões acerca da própria natureza do líder turco. Aclamado como arquiteto da política econômica que tirou o país da situação na qual se encontrava no início dos anos 2000 e da política externa que o promoveu a potência mediadora regional e Estado com presença global, Erdogan recebeu abundantes elogios durante dez anos de governo.
    Contudo, críticas ao governo, visto como cada vez mais conservador, autoritário e paternalista, crescem de maneira contínua, e os recentes banimentos de mídias sociais revigoraram os discursos que apontam para a natureza antidemocrática das decisões do Executivo.
    Apesar de tudo, as eleições municipais realizadas apenas duas semanas atrás deram ao partido do governo uma vitória inquestionável, com percentagens mais elevadas do que as das últimas eleições municipais, em 2009.
    Enquanto as demandas dos manifestantes --menos conservadorismo, mais liberdade, menos imposições do governo na vida cotidiana-- tinham o governo e o premiê como alvos, a ausência de oposição confiável e inovadora limitou as opções.
    Mas por quanto tempo este situação perdurará? Neste momento, a oposição entre secularistas e islamistas está mais forte do que nunca. As queixas dos manifestantes foram revigoradas, enquanto a Corte Constitucional está demonstrando preocupações crescentes com relação às ações do governo.
    Em meio a este cenário politica e socialmente instável, é difícil prever se a desejada prosperidade econômica pode ser assegurada.
    Em agosto a Turquia vai eleger seu presidente e, enquanto as questões de democracia e direitos humanos talvez tenham sido deixadas em segundo plano no pleito local, a natureza politizada e personalista desta eleição pode mudar o jogo.

    ALDO PEREIRA:Síria, lucros & perdas


    Tirar Assad do caminho custou, até agora, devastação maciça, 150 mil mortos, 2 milhões de refugiados, privações horrendas, ódio amargo
    Na guerra civil da Síria, revolucionários heroicos lutam para instituir democracia em lugar de cruel ditadura. Verdade? Mentira?
    Programas de propaganda & desinformação de hoje não criam mentiras evidentes, mas as constroem com elementos ambíguos de verdade. É verdade, por exemplo, que o atual governante sírio, Bashar al-Assad, mantinha estabilidade mediante rigorosa repressão. Também é verdade que há mais de século interesses estrangeiros se intrometem nas governanças do Levante.
    Em 1916, Inglaterra e França assinaram o acordo secreto Sykes-Picot para repartir entre si o território do Império Otomano (ou Turco), aliado da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Até hoje exploram lucrativas "áreas de influência" na região.
    Em dezembro, o presidente francês, François Hollande, foi à Arábia Saudita bajular o rei Abdullah. (Nenhum dos dois levou consortes: Hollande buscava então acobertar sua infidelidade a duas mulheres, e o rei mantinha suas esposas, umas 20, em recatada reclusão.)
    Hollande vendeu ao rei US$ 3 bilhões em armas. Vai entregá-las ao exército libanês para combater o Hizbullah, que defende refugiados palestinos e é aliado de Assad. Arábia Saudita e outras petromonarquias medievais do Oriente Médio têm cooperado com Israel e Estados Unidos na desestabilização de todo o Oriente Médio. Entre outros interesses, prevenir coordenação de forças modernizadoras que afrouxem a subordinação dos reinos petrolíferos a interesses euroamericanos e israelenses.
    Há mais contra Assad: 1) O regime sírio é meio secular, tolera cristãos e moda feminina ocidental. Isso escandaliza Wahhabi e Salafi, ultradireita sunita que é o poder por trás do trono saudita. 2) O gás da plataforma continental do leste do Mediterrâneo, disputada por Chipre, Israel, Líbano, Síria, Turquia e territórios palestinos.
    Para a Europa centro-oriental, sempre foi incômodo depender da Rússia para o gás que a conforta nos invernos. Daí o interesse pelo gás mediterrâneo, negócio no qual sobressai o influente petrogrupo israelense Delek (valor de mercado: US$ 3 bilhões). Quando o Líbano pleiteou sua parte desse gás junto à ONU, o chanceler israelense Avigdor Lieberman rosnou implícita ameaça: "Não lhes daremos uma só polegada [da área reclamada]". Israel ocupou Gaza em 2008 para confiscar direitos palestinos à plataforma.
    Além de jazidas submarinas, a Europa também cobiça outras no Levante. Problema: gasodutos e oleodutos que as ligassem à Europa por terra teriam de cruzar território sírio. Mais uma razão para tirar Assad do caminho. Ao custo, até agora, de devastação maciça, 150 mil mortos, 2 milhões de refugiados, privações horrendas, ódio amargo.
    Não basta. Em janeiro, o Congresso dos Estados Unidos aprovou em sessão secreta mais armas para rebeldes sírios. Em termos de direito internacional, o ato configura agressão. Mas talvez valha para o mundo inteiro o exemplo histórico de arrogância imperial dado pela secretária de Estado assistente Victoria Nuland no contexto da crise da Crimeia: "Que se foda a União Europeia!". Só?
    O primeiro-ministro Tayyip Erdogan é suspeito de ter facilitado à frente al-Nusra acesso ao gás sarin que em agosto matou centenas de civis em Ghouta. Intenção: incriminar Assad e provocar intervenção direta dos Estados Unidos no conflito. Agora, animado por recente êxito eleitoral, Erdogan cogita de invadir a Síria. Menos de 2% dos turcos são árabes, pouco lhes importa que sangue e petróleo árabes jorrem baratos.
    Folha, 15.04.2014
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    terça-feira, 1 de abril de 2014

    Realidade velada: O que podem e o que não podem as mulheres do Irã

    SAMY ADGHIRNI

    RESUMO A história recente do Irã foi marcada por avanços e retrocessos na vida pública e familiar das mulheres. Entre os países islâmicos, é um dos menos adversos à população feminina, escolarizada e com acesso a diferentes setores profissionais e da política, mas ainda discriminada em termos culturais, jurídicos e financeiros.
    Numa noite de agosto passado, a plateia do teatro Vahdat, no centro de Teerã, presenciou um momento único na história da República Islâmica do Irã. Pela primeira vez desde a chegada dos aiatolás ao poder, há 35 anos, uma mulher cantou sozinha em público -e com a bênção do regime.
    No ponto culminante de uma adaptação da ópera "Gianni Schicchi", de Puccini, a soprano Shiva Soroush, 28, ergueu a cabeça e estufou o peito; sua voz firme e cristalina entoou as lamúrias de sua personagem. Ao fim do solo, o frisson explodiu em gritos e aplausos.
    O canto solitário não durou nem meio minuto. Foi suficiente para enterrar o tabu pelo qual uma voz feminina só era lícita se acompanhada de uma masculina.
    Naquela noite, o presidente Hasan Rowhani, novo xodó do Ocidente, já governava o país. Mas o aval havia sido emitido, meses antes, pela equipe do conservador Mahmoud Ahmadinejad.
    "Eu via no rosto das pessoas um misto de alegria e espanto. Eu estava em êxtase. Nunca me imaginei cantando na frente de membros do regime", recordou a moça, semanas depois, num café ocidentalizado da capital iraniana. "Sinto que essa reviravolta prenuncia mais coisas boas", sorriu a cantora.
    Shiva nasceu e cresceu sob o regime teocrático e nunca teve dinheiro para viajar ao exterior. Mas ela faz parte da legião de iranianas, anônimas ou ilustres, que desbravam caminhos para tentar recuperar a proeminência perdida com a queda do xá Mohammad Reza Pahlavi, em 1979.
    Apesar de ainda viverem sob leis machistas e desiguais, as iranianas impõem-se em todas as áreas da sociedade. Três décadas e meia após a revolução, o Irã voltou a ser um dos países de maioria islâmica com ambiente mais favorável -ou menos adverso- para a mulher.
    A comparação chega a ser especialmente embaraçosa para os vizinhos do Irã. As sauditas são atreladas por lei a um tutor -irmão, pai ou marido- e não podem nem dirigir. No Qatar, casas tradicionais possuem duas salas de estar, uma para receber convidados, outra para manter as cônjuges, irmãs e filhas longe das visitas. As afegãs devem abster-se de falar com homens que não sejam ligados a elas por vínculos familiares.
    Apu Gomes/Folhapress
    No quesito condições de vida básicas da mulher, o Irã também se sai melhor que outras regiões de maioria muçulmana. Metade das marroquinas não sabe ler e escrever, enquanto a taxa de alfabetização das iranianas beira os 90%. A mortalidade materna no Irã é de 21 para cada 100 mil partos, dez vezes menos do que na Indonésia.
    Mulheres iranianas são as únicas no mundo legalmente obrigadas a cobrir cabelo e corpo. Mas elas estudam, trabalham e comandam empresas. São advogadas e juízas. Nas entrevistas coletivas, são elas que costumam incomodar os políticos com as perguntas mais certeiras. Madames poliglotas rivalizam-se à frente das mais prestigiosas galerias de arte de Teerã.
    No Irã, elas não só votam como são eleitas deputadas, prefeitas e vereadoras. Podem se candidatar a todos os postos para os quais haja eleições diretas, mas nunca uma mulher foi considerada qualificada para concorrer à Presidência ou à Assembleia dos Peritos, órgão consultivo que escolhe e monitora o líder supremo.
    O Irã tem mulheres artistas, atletas profissionais, taxistas. Nas universidades, a fatia feminina ocupa 52% das cadeiras. A poligamia está em extinção, e os casamentos arranjados, fora de moda. A mutilação genital, prática mais tribal do que religiosa, é raríssima.
    Setareh Nouri, 25, parte da meia dúzia de iranianas que atuam como pilotos da aviação comercial, diz sentir-se desconfortável quando viaja a países árabes. "No Irã temos mais liberdade. Aqui posso trabalhar num ambiente masculino como a aviação, algo impensável no golfo Pérsico", diz a moça.
    A arquiteta Sahere Foruhi, 54, orgulha-se de contrariar frontalmente o clichê da iraniana submissa. Bem-sucedida, viajada e mãe divorciada, espreme sua agenda diária entre serviços para a Prefeitura de Teerã e um escritório no qual tem o ex-marido como sócio.
    Sahere avalia que o preconceito ocasional contra mulheres, na rua ou no mundo dos negócios, se assemelha ao da Itália, onde estudou. "Na maioria dos países europeus, a situação não é tão diferente da nossa. Invejável, só a Escandinávia. Ali, sim, as mulheres estão com tudo", afirma.
    Na política, o debate sobre a representação feminina voltou à tona desde que Rowhani foi eleito, em junho do ano passado, com a promessa de "promover oportunidades iguais". O presidente, um clérigo xiita que se autoproclama moderado, enfrenta críticas por não ter criado até agora o Ministério para Assuntos da Mulher, anunciado na campanha.
    Além disso, somente homens constam na sua lista de ministros. Mas três dos 12 vice-presidentes que apontou são mulheres. A mais proeminente é Masoumeh Ebtekar, 53, responsável por temas ambientais. Ela ficou famosa no Ocidente após a Revolução Islâmica, quando, então cursando biologia, gastou seu inglês perfeito para tratar com a mídia estrangeira em nome dos estudantes que tomaram a Embaixada dos EUA em Teerã.
    O presidente também nomeou duas governadoras (não há eleições diretas para o posto) e escolheu a veterana diplomata Marzieh Afkham, 51, como porta-voz da Chancelaria, principal cargo de relações públicas do Estado.
    Prefeitas são só duas, num país com mais de mil municípios. E, fora do Executivo, a representação feminina se mantém tímida. O número de deputadas caiu de 13 para 9 no último pleito. Elas ocupam uma fila exclusiva no plenário de 290 deputados (não há senadores).
    ALTIVEZ
    O mais surpreendente para quem descobre o Irã talvez seja a altivez cotidiana das iranianas. Elas batem boca no trânsito, barganham preços implacavelmente e pedem informação na rua a quem bem entenderem. Médicas atendem homens e vice-versa.
    Jovens e idosas são capazes de se unir de repente para livrar da polícia moral uma mulher interceptada por carregar na maquiagem ou deixar cabelo fora do véu. A pressão e a gritaria são tamanhas que às vezes só resta aos agentes recuar da ação.
    Nas grandes cidades, a maioria das jovens emenda um namoro no outro. Quase ninguém se apega à virgindade antes do casamento. "Mantenho uma lista com os nomes dos meus parceiros. Senão, é impossível lembrar de todos", diverte-se a tradutora M.J., 24.
    Enquanto ocidentais cultivam a imagem da iraniana reprimida, muitos homens em países vizinhos têm leitura oposta e enxergam a antiga Pérsia como ninho de mulheres excessivamente liberadas.
    Dois anos atrás, um afegão que havia sido pedreiro em Teerã disse à Folha como via as moças dos bairros nobres onde trabalhava. "As iranianas bebem, estão sempre maquiadas e se entregam a homens com quem não se casam. Elas não são boas muçulmanas."
    No livro "The Ends of the Earth" (os confins da Terra, em tradução livre), de 1996, o jornalista americano Robert D. Kaplan expôs suas impressões sobre a república islâmica. Um trecho diz: "As mulheres em Teerã te encaram abertamente. Seus olhos olham fundo dentro dos teus. Cairo não tem muito disso, e Istambul ainda menos".
    POTÊNCIA LAICA
    O relativo avanço da mulher no Irã reflete as peculiaridades da história nacional. As bases do protagonismo feminino foram sedimentadas pelo xá Reza Pahlavi, fundador da dinastia homônima. Um militar linha-dura, mas pouco afeito a tradições, Pahlavi nunca escondeu a admiração por seu contemporâneo Mustafá Kemal Atatürk, o líder que pulverizou as fundações islâmicas da vizinha Turquia para transformá-la em potência laica calcada no modelo europeu.
    Em 1936, Pahlavi criou o movimento Despertar da Mulher, que, à revelia dos religiosos, baniu o uso do véu e incentivou a criação de uma elite feminina nas ciências, nas artes e nos negócios. Mas, quando a Segunda Guerra eclodiu, britânicos e russos incomodaram-se com o flerte entre o xá e a Alemanha nazista e o pressionaram a abdicar em favor do filho.
    Ao assumir o trono, em 1941, aos 21 anos, o jovem Mohammad Reza Pahlavi amenizou a restrição ao véu, mas prosseguiu o projeto de modernização do pai.
    Sob a ditadura de Pahlavi filho, dissidentes eram torturados até a morte nas masmorras da Savak, a mais cruel polícia secreta daquela geração. Mas a idade mínima de casamento para meninas saltou de 13 para 18 anos, e mulheres passaram a ter o direito de pedir o divórcio e de dizer "não" a maridos que quisessem uma segunda esposa.
    Nos anos 1970, alguns bairros de Teerã haviam se transformado em édens cosmopolitas, onde se viam cabelos soltos ao vento, minissaias e moças bebendo em bares. A face mais visível do glamour iraniano era a imperatriz Farah Diba, mulher do xá, que se dividia entre a filantropia no Irã e o jet set.
    REVOLTA
    A narrativa ocidental, porém, tende a omitir a rejeição que essa ocidentalização na marra sofria por amplos segmentos da população. No Irã profundo e na miséria das periferias infladas pela industrialização, um sentimento de revolta e alienação fervilhava.
    Um dos primeiros atos públicos do aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1963, quando era um clérigo provinciano, foi um protesto contra a lei que garantiu às mulheres o direito de votar e concorrer em pleitos municipais. Khomeini foi preso temporariamente. No ano seguinte, ele partiria para o exílio.
    Só retornou ao país em 1979, para comandar a revolução, dessa vez com uma base popular que incluía intelectuais, comunistas e a classe média liberal, unidos pela repulsa à autocracia do xá. Em sinal de apoio a Khomeini, mulheres seculares marchavam de véu islâmico pelas ruas de Teerã. "Todas nós participamos da revolução. Nunca imaginamos o que viria depois", suspira a médica A.K., 53.
    Meses após a queda do xá, Khomeini expurgou segmentos laicos da coalizão que o apoiava e pôs em prática seu projeto de implantar o "governo de Deus". No afã de eliminar o que via como corrupção ocidental, anulou leis familiares da era Pahlavi e impôs um modelo de sociedade patriarcal baseado numa interpretação ultraconservadora da sharia, a lei islâmica.

    Mulheres no Irã

    Apu Gomes/Folhapress


    Iranianas em ônibus de transporte público de Teerã, que tem áreas separadas para homens e mulheres
    O limite mínimo para casamento das mulheres caiu para nove anos -nessa idade, nas escolas, as meninas passam por uma cerimônia que marca a entrada na puberdade e fixa, por isso, a obrigatoriedade do véu. Na prática, porém, meninas de até 13 anos podem ser vistas com cabelos descobertos.
    Elas perderam acesso a várias profissões, como a de juiz, e passaram a viver sob um regime extremamente desfavorável, que as prejudica em aspectos cruciais como o direito a heranças e guarda de filhos. A propaganda transformou o cânone da esposa dócil e zelosa em pilar da ideologia oficial. A lista de atividades banidas às mulheres incluiu desde o canto até andar de bicicleta. Espaços públicos, como transporte coletivo ou escolas, se dividiram segundo o gênero.
    Três anos após a revolução, não somente o véu havia se tornado obrigatório como as mulheres foram proibidas de se maquiar ou andar com homens que não fossem da família, sob pena de se expor à chibata ou à cadeia.
    APEDREJAMENTO
    Adultério tornou-se passível de execução por apedrejamento. A carência de dados oficiais a respeito desse tipo de pena e o fato de que ela, em muitas ocasiões, é aplicada por cortes locais (que podem agir de maneira autônoma) não permite estimar com precisão sua ocorrência.
    Organizações de defesa de direitos humanos fazem avaliações divergentes da situação, mas é seguro afirmar que até o início dos anos 2000 o apedrejamento havia sido imposto dezenas de vezes, incluindo aqueles contra homens.
    "As políticas islamitas geraram uma posição extremamente desvantajosa para as mulheres ao reforçarem a dominação masculina, restringir a autonomia feminina e criar um padrão de relações entre gêneros profundamente desigual", escreveu a feminista Valentina Moghadam, radicada no Ocidente, em artigo científico produzido para o centro de estudos americano Wilson Center, em 2004.
    Dois acontecimentos, porém, modificaram de forma inesperada a condição feminina no Irã. O primeiro foi a disparada do número de mulheres nas universidades após a revolução. Nos tempos da monarquia, famílias conservadoras preferiam manter as filhas dentro de casa para preservá-las de ambientes vistos como promíscuos. A adoção de rígidas leis morais tranquilizou os patriarcas, que passaram a permitir o estudo das meninas. Isso pavimentou o caminho para os altos níveis de instrução das iranianas observados hoje.
    O segundo fator decisivo foi a guerra deflagrada em 1980, quando tropas do ditador iraquiano Saddam Hussein atacaram e invadiram o Irã, com anuência dos EUA. Ao longo de oito anos, o conflito mobilizou, matou e mutilou centenas de milhares de homens, abrindo espaço para maior participação das mulheres no mercado.
    A situação da mulher continuou progredindo após o fim da guerra e a morte de Khomeini, em 1989. No plano econômico, o rastro de inflação, desemprego e escassez de recursos pós-conflito compeliu o presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-97) a restringir o crescimento demográfico. Graças a uma bem-sucedida política de planejamento familiar, a média de filhos por mulher despencou de 5,2 em 1986 para 1,6 em 2011.
    Durante o governo Rafsanjani, a polícia moral se tornou menos agressiva. Em 1992 surgiu a revista "Zanan", primeira publicação local para o público feminino.
    A gradual abertura interna culminou com a eleição à Presidência do reformista Mohammad Khatami, em 1997. Iniciava a era dos véus coloridos, dos batons berrantes e das roupas mais justas. Plásticas no nariz e implantes de silicone viraram febre, e a idade mínima para que as mulheres se casassem subiu para 13 anos.
    A época selou, ainda, o início da disseminação em larga escala das antenas parabólicas (ilegais, mas onipresentes) e da internet (acessada graças a programas que contornam os filtros do regime). Muitos recordam a euforia que contagiou setores da classe média devido à proliferação de shows, filmes e peças de teatro.
    A então crescente sintonia com o mundo externo ajudou a dar voz ao movimento feminista. Em 2003, a juíza e militante de direitos humanos Shirin Ebadi ganhou o Nobel da Paz. Sob Khatami, mulheres acederam ao primeiro escalão do governo e, em 1998, a cientista política Zahra Rahnavard assumiu o comando da Universidade Alzahra de Teerã, tornando-se a primeira reitora da república islâmica.
    RETROCESSO
    Muitas conquistas retrocederam com a chegada de Ahmadinejad ao poder, em 2005. A guarda moral voltou a infernizar as moças. A revista "Zanan" foi banida. A Justiça, por sua vez, tornou a sentenciar morte por apedrejamento, no caso de Sakineh Ashtiani, acusada de adultério e cumplicidade no assassinato do marido. Sob pressão internacional, o Irã recuou da lapidação, mas manteve a mãe de dois filhos na prisão em situação indefinida.
    Há duas semanas, o chefe da Comissão de Direitos Humanos do Irã, Mohammad-Javad Larijani, anunciou que Sakineh havia sido libertada por "bom comportamento". O Comitê Internacional contra o Apedrejamento, ONG com sede na Europa, dá outra versão. A acusada teria sido solta após tentar se matar engolindo pregos. "Sua morte geraria uma pressão terrível contra o regime, que preferiu se livrar do incômodo", disse à Folha uma fonte do comitê.
    Mas o pior legado de Ahmadinejad quanto à mulher, segundo uma ilustre feminista, foi a paralisação da luta contra aquela que continua sendo a maior injustiça às iranianas: inferioridade perante a lei.
    "Perdemos oito anos", diz, por telefone, Sussan Tahmasebi, 47, radicada nos EUA. A exemplo de Shirin Ebadi -que se exilou no Reino Unido após a controversa reeleição de Ahmadinejad, em 2009-, Tahmasebi teve de sair do Irã após haver defendido mudanças na legislação."Pessoalmente, culturalmente ou socialmente, as mulheres obtiveram avanços. Mas a lei está em defasagem gritante com a realidade", lamenta Sussan.
    No tribunal, o testemunho feminino ainda vale metade do masculino. O "preço do sangue", indenização paga pela família de um assassino a parentes da vítima, também é inferior em caso de morte de mulher. A herança dos filhos é maior que a das filhas. Homens podem pedir divórcio com mais facilidade. A mãe tem chances mínimas de obter a guarda dos filhos.
    Homens também são os principais beneficiados pelo "sigheh", espécie de "casamento temporário" no qual o casal define um prazo de validade (que pode ser revogado se houver comum acordo e que vai de algumas horas a 99 anos), para tornar lícitas relações sexuais. O pacto, que não precisa ser registrado, supõe alguma compensação financeira à mulher. Enquanto um homem pode acumular vários "sighehs", a mulher precisa esperar a expiração do acordo para emendar um segundo. Na prática, o dispositivo acaba sendo um artifício para maquiar prostituição.
    Vulnerável nos tribunais, a iraniana carece de recursos para reagir a humilhações de todo tipo.
    No ano passado, a Federação Iraniana de Natação se recusou a oficializar o recorde de Elham Asghari, que, embora coberta da cabeça aos pés por um traje preto, percorreu 20 km no mar Cáspio mais rápido que qualquer pessoa no país. A marca da atleta não foi registrada sob o pretexto de as formas de seu corpo terem ficado à mostra quando ela saiu da água.
    Meses depois, autoridades impediram Nina Moradi de assumir a cadeira de vereadora para a qual fora eleita, no norte do país, alegando que sua beleza perturbaria o trabalho dos políticos locais.
    SURPRESA
    Para surpresa de muitos ocidentais, existem iranianas favoráveis à desigualdade. "Essas diferenças existem no Corão. Mulheres são seres emocionais, incapazes de tomar decisões de forma adequada", argumenta a dona de casa Mansureh H., 47, que apoia a obrigatoriedade do véu.
    A dona de casa é adepta do chador (barraca, em farsi), espécie de lençol que cobre da cabeça aos pés, deixando rosto e mãos à mostra. Nos meios mais jovens e liberais predomina o mais leve hijab, que cobre cabelo e pescoço.
    Muitas iranianas têm visão oposta à de Mansureh e consideram que o véu constitui a mais contundente ferramenta do regime para controlar as mulheres.
    "É um insulto à sabedoria e à personalidade da mulher. O fato de quererem decidir como me visto é terrível. Homens não vivem isso", esbraveja a jornalista Afsaneh J., 33. "O véu restringe muito nossa vida. Imagine correr no parque de manhã usando isso na cabeça."
    Uma das mais conhecidas atrizes do cinema iraniano confidenciou, num jantar na casa de amigos em Teerã, ter recusado convites de Hollywood por causa do véu. "Quero continuar no Irã. Não posso aparecer em filmes nos quais sempre pedem para tirar o lenço e fazer cenas de romance."
    Bel Falleiros
    Parissa Porouchani, 56, que fundou e comanda o maior grupo de marketing no país, lamenta que o véu tenha se tornado uma "obsessão do Ocidente"."Quando vou à Europa, detesto que me olhem com cara de coitada por ter de cobrir a cabeça em meu país. Ocidentais não entendem que temos problemas mais graves, como desemprego e temas políticos."
    Tanto Parissa como Setareh, a piloto de avião, dizem que o véu restringe o assédio. "Na época do xá, homens mexiam com as mulheres nas ruas ou no transporte público, assobiando ou passando a mão. Há que reconhecer que isso é raro hoje", diz a empresária.
    RESPALDO
    Mudar o status legal da mulher exigiria respaldo concomitante de três das instâncias mais conservadoras do regime: o Poder Judiciário, o Parlamento e o Conselho de Guardiães da Revolução (grupo de 12 fiscais ideológicos). A julgar pela crescente pressão interna, a lei não mudará tão cedo.
    A estudante e ativista pelos direitos da mulher Maryam Shafipour, 29, foi condenada no início de março a sete anos de prisão por "propaganda contra o Estado". Maryam tem problemas de circulação, e sua saúde vem piorando na cadeia, segundo relato de parentes ao site reformista Kaleme.
    O caso se parece ao da feminista Bahareh Hedayat, 32, presa desde 2010 pelo mesmo pretexto. O Judiciário mantém-se indiferente à campanha pela libertação das ativistas que buscam direitos iguais.
    O cerco vai muito além da luta feminista. Execuções dispararam desde o fim do ano passado. Jornalistas voltaram a ser perseguidos. Presos políticos em liberdade condicional retornaram às celas.
    A guinada é vista como demonstração de força dos inimigos de Rowhani no fragmentado tabuleiro da teocracia iraniana. Obrigados a engolir as concessões do presidente ao Ocidente na área nuclear, os ultraconservadores, influentes e numerosos, manobram para deixar claro quem manda em casa -inclusive na questão feminina.
    Enquanto seus subordinados se digladiam, o aiatolá Ali Khamenei, chefe absoluto da teocracia iraniana, cultiva a ambiguidade. Mas, no discurso do Ano Novo persa, na semana passada, Khamenei disse que "cultura é mais importante que economia". Em aparente sinal de apoio às facções contrárias à liberalização da sociedade, ele pediu às autoridades que combatam "brechas culturais perigosas".
    A feminista Tahmasebi reconhece as limitações de Rowhani. Mas aposta que o renascimento da sociedade civil pós-Ahmadinejad poderia criar um ambiente favorável a mudanças. "Se Rowhani aliviar a pressão do aparato de segurança sobre a população, aspirações das mulheres ressurgirão naturalmente. É compatível com o islã, basta interpretação mais progressista."
    Aos obstáculos legais, soma-se uma resistência cultural machista, tão difusa quanto profunda, que se manifesta de incontáveis formas.

    Mulheres são as maiores vítimas da crise econômica dos últimos anos, decorrente das sanções ao programa nuclear e das políticas populistas de Ahmadinejad, que esvaziaram cofres públicos e acirraram a inflação. O desemprego feminino supera 20%, mais que o dobro do masculino. Por uma regra não dita, homens quase sempre recebem salários mais altos.
    "Pelo fato de eu ser mulher, meus clientes querem pagar metade", diz a advogada Elahe J., 37. "O modelo patriarcal está no sangue dos homens iranianos."
    Apesar da ausência de estatísticas a esse respeito, várias das entrevistadas para esta reportagem dizem ter notado que a violência contra a mulher está em alta.
    M.J., a tradutora, culpa as mães, que "mimam demais os meninos". Ela conta ter sido seduzida por um rapaz moderno e viajado, que terminou o flerte ao descobrir que ela havia tido uma vida amorosa antes dele. "Ele me disse que eu era independente demais."
    A secretária Mehri R., 27, casada, diz falar em nome de todas as iranianas: "Muitas de nós se destacam na sociedade e parecem ter o mesmo espaço que os homens. Mas, quando você ouve segredos íntimos dessas vencedoras, percebe que, no fundo, todas sofrem na sua condição de mulher".
    SAMY ADGHIRNI, 34, é correspondente da Folha em Teerã.
    APU GOMES, 30, é repórter fotográfico da Folha.
    BEL FALLEIROS, 31, é artista plástica. 

    Folha, 30.03.2014