quinta-feira, 29 de maio de 2014

Copa do Alcorão: No Irã, representantes de 70 países disputam quem melhor recita o livro sagrado do islã; país usa a competição para se promover

SAMY ADGHIRNI - DE TEERÃ
Jorge Ezequiel Diaz, 26, viajou de Buenos Aires até Teerã para participar da Competição Internacional do Alcorão, que reúne a cada ano na capital do Irã os maiores mestres na arte de recitar e decorar o livro sagrado do islã.
Mas o argentino, inscrito na categoria leitura, não foi páreo diante de concorrentes mais preparados. "O nível é alto demais", suspirou, após declamar um trecho definido por sorteio.
Jorge foi eliminado porque o júri questionou seu sotaque em árabe, língua original do Alcorão, que ele não fala. Os árbitros também acharam que ele errou na ênfase ao pronunciar a palavra Alá.
O argentino foi um dos 106 inscritos na 31ª edição da competição, que se encerra na próxima segunda, após uma semana de disputa num centro de convenções. Mulheres não participam.
Neste ano, o concurso tem representantes de 70 países, incluindo Reino Unido e Canadá. Não há brasileiros.
A disputa é promovida pela Organização para Doações e Caridade, controlada pelo líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.
Todas as despesas dos participantes, de traslado aéreo a alimentação, são bancadas pela organização como parte da estratégia iraniana de estender seu "soft power", o poder geopolítico pela persuasão e pela empatia.
O Irã convidou até um participante da Colômbia, país sem embaixada em Teerã.
"Estou aqui para aprender. Quero dedicar minha vida ao islã", diz o colombiano Hernando Diaz, 27.
Apesar de o Irã ser o maior propagador do xiismo, ramo minoritário no islã, candidatos sunitas se dizem bem recebidos. "Iranianos têm sido muito gentis. Até o hotel é bom", afirma o sunita Hamid Ahmed, 37, do Níger.
A maior parte dos candidatos são craques do tajwid --a ciência da recitação do Alcorão-- em seus respectivos países. Outros são detectados por "olheiros" mundo afora e incentivados a mandar uma gravação de voz como teste.
O prêmio final equivale a US$ 13 mil (R$ 28 mil) para o vencedor de cada categoria.
Na prova de recitação, o júri avalia dicção, emoção e controle de respiração em versículos que podem se estender por meio minuto. A leitura se assemelha a um canto pausado e melancólico.
Na categoria memorização, o candidato tem um dia para decorar um trecho, também definido em sorteio.
"O nível dos participantes ocidentais aumentou muito nos últimos anos", diz o clérigo Seyed Masoud Mirian, chefe do comitê de seleção.
Os favoritos são participantes dos países de maioria muçulmana, principalmente aqueles que falam árabe.
ABISMO
Não é preciso ser perito, por exemplo, para notar o abismo entre o candidato egípcio, clérigo profissional de canto envolvente e cristalino, e o chinês, cuja voz parecia oscilar a cada frase.
Concorrentes se revezam num palco diante de um plenário cujas mesas são enfeitadas com bandeiras dos países participantes.
A performance ocorre sob olhar grave de dois enormes retratos dos líderes supremos do passado e do presente, Khomeini e Ali Khamenei.
O texto declamado aparece num telão eletrônico em árabe, farsi e inglês. Não há aplausos.
O júri, composto por 15 membros, acompanha numa sala separada, olho grudado na transmissão ao vivo da TV estatal.
As provas são abertas ao público, que circula livremente pelo local e pode falar com os participantes. O plenário tem área reservada às mulheres, quase todas cobertas com o véu preto integral que identifica origem social conservadora.
"Gosto muito da atmosfera espiritual deste evento", diz a dona de casa Leila, 30.
Alguns competidores, porém, não escondiam a decepção pelo fato de o presidente Hasan Rowhani, um clérigo, não ter aparecido na cerimônia de abertura.
"Estávamos todos na expectativa de vê-lo", lamentou o argentino.
A ausência alimenta especulações de disputas internas entre Rowhani, favorável à relativa liberalização, e seus adversários ultraconservadores, alguns dos quais são associados ao líder supremo. "O presidente não aceitou nosso convite", diz Bagheri Karim, do comitê organizador. Folha, 29.05.2014.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Manifestantes em Teerã protestam contra "véus errados"

Por THOMAS ERDBRINK
TEERÃ - Motoristas buzinavam freneticamente em seus carros, enquanto homens e mulheres vestidas com o chador preto brandiam os punhos ao abrir caminho pelo intenso tráfego matutino, esbravejando para que o governo prenda mulheres que não estejam devidamente cobertas.
"A corrupção e a imoralidade engoliram a nação", disse uma mulher, Shala Mousavi, a um repórter da rede de TV estatal iraniana. "Somos forçados a agir".
Os manifestantes tomaram a praça Fatemi, no centro da cidade, desafiando a proibição governamental a protestos não autorizados previamente.
Agentes da polícia ficaram de prontidão em meio aos manifestantes que bloquearam o trânsito para exigir medidas mais duras contra mulheres que desrespeitem o código de vestimenta islâmico do Irã, principalmente agora que o verão está chegando no país. Em termos numéricos, o protesto sobre o código de vestimenta, organizado por um seminário xiita em Qom, foi insignificante.
Mas o fato de a manifestação ter sido permitida levou muitos a concluírem que forças poderosas estão conspirando para minar as frequentes promessas do presidente Hasan Rowhani de conceder mais liberdades individuais.
Essa frente na longa guerra cultural entre os radicais e os reformistas do Irã se concentrou em um dos pilares da Revolução Islâmica: o véu para as mulheres.
No país, todas elas são obrigadas a cobrir a cabeça e usar um casaco, de preferência até um pouco acima do joelho, em público, incluindo dignatárias e turistas estrangeiras.
O Estado não determina formas exatas, cores ou tamanhos para os véus e casacos, por isso muitas iranianas criaram conjuntos combinando casacos apertados e echarpes fluorescentes do tamanho de um lenço, de onde mechas de cabelo caem em cascata.
Os radicais frequentemente acusam algumas mulheres de "perambular pelas ruas praticamente nuas". As roupas ocidentais também são desconfortáveis, disse um importante aiatolá.
"Vestindo roupas apertadas, algumas não podem sentar ou ficar em pé facilmente. Tais vestidos são prisões, e não roupas", disse Naser Marakem Shirazi em um comunicado. "Nossa cultura de vestimenta precisa ser mudada."
O Estado promoveu debates com clérigos na televisão para tentar convencer as mulheres a se cobrirem totalmente, destacando que a exposição de mechas pode levar a "depravações morais".
Recentemente, apareceram em Teerã cartazes mostrando a iguaria nacional do país, o pistache, com um texto dizendo que tudo o que é bom vem embrulhado numa casca, assim como o véu, o "hijab".
"Mas isso não está funcionando", disse uma mulher durante o protesto, fazendo referência à abordagem educacional em relação ao "hijab". "Todo verão, os 'hijabs errados' aparecem de novo. É simplesmente terrível."
Masoumeh, como ela se identifica, e algumas amigas do seu bairro, Yaftabad, alugaram um ônibus para irem à manifestação "a fim de acabar com essa situação".
Enquanto ela falava, um homem calvo, contrário ao protesto, aproximou-se e disse: "Deixem-nos em paz. Tenho vergonha de que você seja iraniana", e foi embora. "Que você fique careca para sempre", retrucou ela, fazendo suas amigas caírem na gargalhada.
A solução, "infelizmente", segundo Masoumeh, é dar plenos poderes à polícia da moralidade.
Diante de uma sociedade em transformação, onde mais pessoas estão focadas em direitos individuais do que em tradições, o Judiciário do Irã e a polícia criaram em 2005 a "Gashte Ershad", ou patrulha de orientação, para fazer valer o código de vestimenta. Há anos esses agentes abordam mulheres que não estariam devidamente trajadas. Seus pais, maridos e irmãos precisam ir à delegacia para liberá-las.
Durante sua campanha, em junho, Rowhani prometeu retirar essas odiadas forças das ruas.
Em visita a uma feira de livros, quando Rouhani disse que "pessoas cultas não precisam de orientação", Ismael Ahmadi Moghaddam, comandante da polícia, respondeu que "as pessoas incultas é que precisam de orientação".
No dia seguinte, a polícia da moralidade apareceu. Há indícios, porém, de que os radicais podem ter um verão difícil pela frente. Uma nova página do Facebook traz fotos de iranianas sem seus lenços, em passeios turísticos.
Mais de 135 mil pessoas curtiram a página "Liberdades Furtivas de Mulheres Iranianas" nos seus primeiros nove dias no ar.
Os administradores da página são anônimos, e a foto da capa, no topo da página, diz "Somos apenas nós mesmas". NYT, 20.05.14

Invocando deuses para o bem e o mal

INTELIGÊNCIA/OKEY NDIBE
O sequestro de estudantes nigerianas é o último drama desalentador que ocorreu no país mais populoso da África, cujo panorama promissor frequentemente é minado por desastres apresentados como atos divinos.
A Nigéria está entre os países mais religiosos do mundo -e há poucos anos eram apontados como o povo mais feliz do globo.
Um estrangeiro que venha aqui pode se espantar com a quantidade de igrejas e mesquitas.
As conversas são repletas de referências a Deus. Pergunte a alguém, "Como vai?", e a resposta é: "Bem, graças a Deus".
Perguntando se a pessoa já conseguiu um emprego, é provável ouvir: "Acredito que Deus me arranjará um emprego" ou "Deus está no comando".
Em um país com tantas estradas esburacadas e tantos carros em mau estado, e onde é mais fácil comprar uma carteira de motorista do que fazer um exame de habilitação, poucos viajam sem fazer uma pausa para orar.
Motoristas cristãos rezam para serem "cobertos pelo sangue de Jesus" e imploram para Deus "deter bruxas, feiticeiros e espíritos demoníacos" que supostamente se escondem nas estradas.
Lamentavelmente, a manifestação obsessiva de religiosidade frequentemente é uma desculpa para fazer a coisa errada -ou não fazer nada. O fervor pode levar à fuga da responsabilidade. É como se alguns nigerianos tivessem inventado um "Deus" indulgente com quem fazem tratos.
Clérigos mal-intencionados ganham fortunas afirmando que todos os problemas imagináveis -pobreza, desemprego, doenças e a incapacidade de atrair um cônjuge- têm uma causa satânica e precisam de antídoto divino.
Em 2012, uma alta funcionária do governo da Nigéria disse a seus convidados sul-africanos que um espírito maligno estava por trás do fracasso de seu país em fornecer energia elétrica regularmente. E defendeu um exorcismo para sanar o problema.
O grupo radical islâmico Boko Haram usou a religião para justificar os sequestros, alegando que educar meninas viola o Alcorão.
O Boko Haram, que jurou erradicar a influência ocidental e impor a supremacia islâmica, incendiou escolas, matou centenas de estudantes em seus quartos e lançou bombas em lugares públicos, matando centenas de pessoas e mutilando muitas outras. Anteriormente neste mês, alguns de seus membros, armados com fuzis AK-47 e granadas lançadas por foguetes, foram a Gamboru Ngala, uma comunidade pastoral perto de Camarões, e mataram mais de 300 pessoas.
A sede de sangue do Boko Haram e sua alegria perversa ao matar e mutilar em nome de Alá têm despertado um misto de horror e curiosidade no mundo.
Acostumados com atrocidades cujos autores invocam divindades, os nigerianos veem a disseminação do terror sectário como uma fase mais sangrenta de uma calamidade incessante.
Duas das principais religiões do mundo, o islamismo e o cristianismo, se debatem na Nigéria. Ambas tiveram períodos de coexistência pacífica, mas também registram uma longa história de relações tumultuadas.
Muitas vezes as tensões degeneraram em violência devido a membros ultrazelosos de correntes extremistas do islã, dispostos a converter "infiéis" à força.
A Nigéria tem muitos cristãos, muçulmanos e animistas que levam uma vida honesta, digna e moldada pelos preceitos de sua fé.
Mas é também um país no qual escroques e charlatães, incluindo políticos e os chamados "homens poderosos de Deus", usam o nome de Deus como marketing ou para encobrir suas falcatruas.
Em 2009, dois executivos de um banco nigeriano acusados de fraudar clientes que haviam depositado centenas de milhões de dólares eram não só membros proeminentes de uma igreja, como pastores ordenados.
Nunca vi qualquer político nigeriano nos últimos 25 anos que não tenha dito ser um muçulmano ou cristão devotado. Mesmo assim, a maioria enriqueceu obscena e inexplicavelmente.
É fascinante observar como a linguagem do poder público na Nigéria muda o tempo todo, amoldando-se a novos valores morais. Há várias décadas, um funcionário público que acumulasse riqueza ilicitamente seria chamado de ladrão ou peculatário, mesmo que não fosse punido pela lei.
Hoje em dia, um funcionário como esse diria: "Fui abençoado pelo meu Deus". Um ditado diz que tudo o que um ladrão precisa para santificar seu roubo é oferecer o dízimo estipulado em 10%.
E o que dizer de um candidato político que trapaceia para ganhar uma eleição? Como conferencista da Fulbright na Universidade de Lagos em 2002, usei uma discussão de "A Man of the People" [Um Homem do Povo], de Chinua Achebe, para falar sobre fraude eleitoral.
Um aluno ergueu a mão, ansioso para dar sua opinião. "Todo poder emana de Deus. Portanto, não se pode condenar um candidato, mesmo que ele trapaceie."
Outro estudante me explicou o seguinte: "Se não quisesse que o trapaceiro ganhasse, Deus poderia decretar sua morte".
Esse argumento bizarro explica por que, apesar dos templos onipresentes, a Nigéria parece ser tão obsediada eticamente. NYT, 20.05.14
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